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Reinaldo Azevedo Análises políticas em um dos blogs mais acessados do Brasil .
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05/11/2012 às 7:00
"O tema estúpido da
redação do Enem, as mentiras do examinador e as duas exigências absurdas feitas
aos estudantes. Ou: Intelectualmente falando, prova de redação deveria ser
impugnada! Não vi no detalhe a prova do Enem. Sei que professores de cursinho
divergem sobre a resposta de algumas questões, a maioria relacionada a
interpretação de texto, que costuma mesmo ser terra de ninguém. Mas não vou me
ater a isso agora".
"Quero aqui comentar o tema da redação. Poucas pessoas se
deram conta de que o Enem — quem quer tenha elaborado a prova — deu à luz uma
teoria e obrigou os pobres estudantes a escrever a respeito, a saber: “O
movimento imigratório para o Brasil no século XXI”. Ainda que houvesse
efetivamente um fenômeno de dimensão tal que permitisse tal afirmação — não há
—, cumpre lembrar que estamos apenas nos 12 primeiros anos do referido século.
“Século”, em ciências humanas, não é só uma referência temporal. É também um
tempo histórico".
"Mais 30 anos podem se passar, sem que tenhamos chegado à
metade do século 21, e podem diminuir drasticamente as correntes — que nem são
fluxo nem são movimento — de migração para o Brasil. Tratar esse evento como
característica de século é burrice. Provo: “O PT é o partido que mais elegeu
presidentes no século XXI”. O que lhes parece? Ou ainda: “O PSDB é o maior
partido de oposição do século XXI no Brasil”. Ou isto: “O PMDB, no século 21,
participa de todos os governos”. Ao estudante, são apresentados três textos de
referência. Um deles trata da imigração para o Brasil no século 19 e começo do
século 20 e de sua importância na formação do país".
"Um segundo aborda a chegada
dos haitianos ao Acre, e um terceiro trata dos bolivianos clandestinos que
trabalham em oficinas de costura em São Paulo. Vejam que curioso. O examinador
acabou fazendo a redação — e das ruins, misturando alhos com bugalhos. Tenta-se
induzir os alunos a relacionar essas duas ocorrências recentes — a chegada de
haitianos e de bolivianos — aos fluxos migratórios do passado, quando houve um
claro incentivo oficial à entrada de imigrantes. Os fatos de agora não guardam
qualquer relação de forma ou conteúdo com o que se viu no passado".
"Mas e daí? O
Enem não está interessado em rigor intelectual — e bem poucos alunos do ensino
médio teriam, com efeito, crítica suficiente para estabelecer as devidas
diferenças. A prova não quer saber dessas diferenças — e chego a temer que um
aluno mais preparado e ousado, coitado!, possa quebrar a cara. Um ou outro
poderiam desmoralizar a “teoria”, com o risco de ser desclassificado. Na
formulação da proposta, pede-se que o aluno trate do tema “formulando proposta
de intervenção que respeite os direitos humanos”. Assim, exige-se do pobre que,
além de defender e sustentar com argumentos uma tese estúpida, ainda se
comporte como um verdadeiro formulador de políticas públicas ou, sei lá, um
especialista em populações".
"Essas duas exigências foram já incorporadas às
provas de redação do Enem. Muito bem: digamos que um estudante seja contrário a
que se concedam vistos a quaisquer pessoas que cheguem clandestinas ao Brasil,
defendendo que sejam repatriadas. Esse aluno hipotético estaria apenas cobrando
respeito à lei — pela qual deve zelar o Poder Público — o mesmo Poder Púbico
que realiza a prova. Digam-me cá: a repatriação de clandestinos é uma
“intervenção aceitável”, ou o estudante está obrigado a concordar com o
examinador, como há de ceder que, afinal, dois mais dois são quatro"?
"A
repatriação, no caso, seguindo os passos das leis democraticamente instituídas
no Brasil, caracteriza um atentado aos direitos humanos? Até agora, o próprio
governo federal não sabe o que fazer com os haitianos, e o Ministério Público
do Trabalho não consegue coibir a exploração da mão de obra boliviana. Por que
os estudantes teriam de ter para isso uma resposta? Atenção! Eu nem estou aqui
a defender isso ou aquilo. Noto apenas que a imigração ilegal divide opiniões
no mundo inteiro e que é um absurdo, uma arrogância inaceitável, que se possa,
depois de inventar uma tese, estabelecer qual é a opinião correta que se deve
ter a respeito, exigindo ainda que os estudantes proponham “intervenções”,
porém vigiados pelo “Tribunal dos Direitos Humanos”.
"Aí o bobinho esperneia:
“Mas defender os direitos humanos não é um bem em si, um valor em si?”. Claro
que é! Assim como ser favorável ao Bem, ao Belo e ao Justo. A questão é saber
que tribunal decide quando “os direitos humanos” estão ou não a ser
respeitados. Eu, por exemplo, considero que seguir leis democraticamente
instituídas ou referendadas, segundo os fundamentos da dignidade humana (a
integridade física e moral), é uma expressão eloquente dos… direitos humanos! A
prova é apenas macumbaria multiculturalista mal digerida — não que possa haver
uma forma agradável de digeri-la, é bom deixar claro"!
"As provas de redação do
Enem — e de vários vestibulares — têm cobrado que os alunos sejam mais
bonzinhos do que propriamente capazes. Não por acaso, nas escolas e nos
cursinhos, as aulas de redação têm-se convertido — sem prejuízo de o bom
professor ensinar as técnicas da argumentação — numa coleção de dicas
politicamente corretas para o aluno seduzir o examinador. Com mais um pouco de
especialização, o pensamento será transformado numa fórmula ou numa variante do
“emplastro anti-hipocondríaco”, de Brás Cubas (o de Machado de Assis),
destinado “a aliviar a nossa pobre humanidade da melancolia”.
"É o que têm feito
os professores: um emplastro antipoliticamente incorreto, destinado a “aliviar
os nossos pobres alunos da tentação de dizer o que eventualmente pensam”. Isso,
como todo mundo sabe, é o contrário da educação. A partir de hoje, começo a
escarafunchar as teses de especialistas brasileiros em geografia humana e
populações em busca do “Movimento Migratório para o Brasil no século 21″ — nada
menos. Segundo critérios estritamente intelectuais, essa prova de redação
deveria ser simplesmente impugnada. Sei que não é conforto para os alunos que
fizeram a prova, mas escrevo mesmo assim: se vocês não tinham muito o que dizer
a respeito, não fiquem preocupados — vocês foram convidados a falar sobre uma
falácia, sobre o nada".
Por Reinaldo Azevedo
Tags: Enem
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